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Angra Jazz 2021

(Textos de Paulo Barbosa e Leonel Santos)

Leonel Santos

De há muito que o Angrajazz se guindou ao patamar dos grandes festivais de Jazz nacionais, rompendo com a insularidade, muito por uma produção competente, mas principalmente pela programação criteriosa. Adiado um ano devido à pandemia, o Angra Jazz logrou, ainda assim, manter o forte da programação. Os grandes momentos estiveram no inesquecível concerto de Bill Frisell, mas também em Anat Cohen, em Jeffery Davis e na juventude da Orquestra Angrajazz.

Orquestra AngraJazz c/ Zé Eduardo
O festival começou, como sempre, com a menina dos olhos da Associação Angrajazz, a sua Orquestra, que fará 20 anos em 2022, e que claramente já atingiu a maioridade.
Com o histórico Zé Eduardo como convidado, a Orquestra Angra Jazz deu início à primeira noite do festival, como acontece desde há duas décadas. O motivo era a comemoração dos 130 anos do nascimento de Cole Porter, um dos nomes maiores da música americana, onde o Jazz foi buscar inspiração para um sem conta de interpretações. O contrabaixista foi solicitado como solista e também para escrever os arranjos para a orquestra; aquela orquestra, atendendo também à particularidade dos instrumentistas.
A opção de Zé Eduardo não foi “mexer na orquestra” (ou sequer substituir-se ao contrabaixista), mas acrescentar-se como “wild card”, revelando insuspeitadas possibilidades no instrumento na construção das melodias, como se de uma guitarra se tratasse.
Assinalável foi a presença de vários jovens, e em especial nos metais, a substituir a velha geração, do Márcio Cota e Bráulio Brito entre outros veteranos. Muito jovens, que se ensaiaram de forma assertiva como solistas, entusiasmando merecidamente o auditório. Neles reside, não duvido, o futuro da Orquestra Angra-Jazz. O presente está aí: na plasticidade e capacidade de se entregar a uma música e a um autor.

Vincent Meissner Trio
Será meritória a aposta do festival em a ele trazer novos músicos, mas o segundo concerto da noite deixou-me algum amargo de boca. Os três jovens alemães do Vincent Meissner Trio são inequivocamente três virtuosos, possuidores de uma cultura musical enorme. O modelo do trio recupera a fórmula do The Bad Plus, na pressão rítmica, e eles são capazes de tocar literalmente tudo, dos standards à música contemporânea, e fizeram-no. Mas em nenhum momento eles, por outro lado, introduziram qualquer novidade, revelando uma lacuna de personalidade, que poderemos atribuir à juventude (o pianista tem 21 anos de idade), mas também não a ousaram. No desfilar de fórmulas e estilos, faltou-lhes a emoção. O momento mais simbólico terá sido a vulgaridade da interpretação do “In My Life” dos Beatles, logo seguido de uma composição de Pierre Boulez. Tudo correcto, mas incapazes de acrescentar qualquer elemento diferenciador, como é mandatório no Jazz.
Meissner e os seus companheiros têm um enorme caminho à frente para desbravar, e eles claramente possuem as competências técnicas, mas falta-lhes, para já, personalidade. Concerto agradável, ainda assim.

Jeffery Davis Quinteto
O segundo dia abriu com um quinteto composto pela nata do Jazz nacional, o quinteto de Jeffery Davis; vibrafonista, compositor, líder e professor, que se desdobra em vários projectos, também na música clássica. Como professor, Davis é o responsável pelo interesse de muitos jovens pelo seu instrumento, e vários têm surgido nos últimos anos.
For Mad People Only” é um disco de 2019 que teve, devido à pandemia, poucas oportunidades de apresentação. Esta é, creio, a primeira vez que o quinteto toca ao vivo neste ano.
Todas as composições pertencem a Davis, “com o intuito de demonstrar que o vibrafone pode ser utilizado de forma inovadora num contexto de ensemble e de composição… enquanto instrumento melódico mas, igualmente, harmónico”. E, como é próprio do Jazz, os arranjos foram concebidos para aquela combinação de instrumentos e personalidades.
Marcos Cavaleiro e Francisco Brito são os motores da generosa máquina rítmica que aqui, neste contexto, raramente se evidenciam, discretos, mas eficazes. O protagonismo é relegado para o saxofone alto de José Soares, que se confirmou como um saxofonista engenhoso e proficiente na frente de palco. O vibrafone e o piano de Óscar Graça complementam-se, não se sobrepondo, no desenho das melodias, com o piano deslocando-se para a secção rítmica ou como solista, ele que é, provavelmente, o pianista português com um som mais jazzy, menos melódico (mesmo se o sabe ser). E Davis, distribuindo papéis, nos uníssonos com o saxofone, no contraponto ao piano ou explorando a sonoridade mais natural do vibrafone como solista.
Um excelente concerto, como o disco antecipava.


Trineice Robinson & Don Braden Quartet
A segunda noite do Angrajazz completou-se com o grupo de Trineice Robinson & Don Braden Quartet. A banda, dirigida pelo eficiente saxofonista Don Braden, possui toda a energia e solidez do Jazz norte-americano, mais negro, mas o saxofone e a voz embaraçaram a apresentação pelo excesso de simpatia e vedetismo. A jovem Trineice, que possui uma voz poderosa, com uma clara marca gospel, com traços soul e Jazz, é traída pelos tiques de diva. O artificialismo do espectáculo evidencia-se na sonoridade melíflua do saxofone, a que se opõe a secção rítmica, sem mácula, e em especial o poderoso contrabaixo de Kenny Davis.
Um espectáculo onde todos os músicos foram bons, mas que foi prejudicado pela vacuidade do projecto.

Bill Frisell Trio
A última noite do Angrajazz começou com o trio de Bill Frisell, com Thomas Morgan e Rudy Royston.
Quando tento encontrar uma palavra para definir a música de Bill Frisell e o que aconteceu em Angra, uma palavra apenas me surge: maravilhoso! Ela foi o que de mais perto eu encontro para expressar o meu conceito de belo, pura magia em palco! Os primeiros momentos até me sugeriram que o mestre estava em dia aziago, com um qualquer problema de som que não alvitrei perceber, e, por uns minutos, o guitarrista pareceu procurar algo que lhe escapava. Insistência nos pedais da guitarra, acordes soltos onde procurei divisar as melodias de algum standard, até que se pareceu fixar em Thelonious Monk. E a partir daí a magia aconteceu. Os temas sucederam-se ininterruptamente, entre clássicos, temas populares ou insuspeitas canções, de onde Frisell extrai apenas algumas notas, frases, melodias que evoca ou modifica, improvisa. E como sempre acontece (com Frisell), incauto, eu deixo-me surpreender; a partir de um momento eu deixo de tentar explicar a música e sinto um nó na garganta e apenas sinto e maravilho-me.
Não existem quaisquer laivos de exibicionismo (o pecado dos virtuosos) na música de Bill Frisell, mesmo se ele usa de todos os recursos possíveis, na guitarra ou nos pedais, em repetições, distorções ou sobreposições, como se dispondo de um verdadeiro estúdio em palco.
Thomas Morgan e Rudy Royston funcionam como um só, como uma extensão dos seus braços e da sua voz. Com carreiras e personalidades bem distintas (introvertido Morgan, extrovertido e impulsivo Royston), parecem ter resolvido neste trio o mistério da santíssima trindade.
E perdoem-me os meus leitores pelos excessos mais pessoais que apus nestas linhas, mas a escrita fluiu para aí e eu não consegui escrever de outra forma.

Anat Cohen Tentet
Cabia a Anat Cohen a difícil tarefa de terminar o festival ao nível do que tínhamos assistido alguns momentos antes. E se tal não era simplesmente possível, ela logrou fazer um bom concerto, bem diferente na fórmula.
Anat Cohen é uma clarinetista muito especial que tem procurado devolver ao instrumento o protagonismo que este teve nos primórdios do Jazz. E se ela possui uma sonoridade distante dos virtuosos, como Sidney Bechet, ela encontrou nesse Jazz a alegria que é seu apanágio.
Nascida em Tel Aviv, onde estudou o clarinete, ela faz mudou-se jovem para o caldeirão de elementos e fórmulas que constituem o Jazz de New York. A sua música revela essa mesma diversidade, ao saltar do dixieland para o klezmer, da música de câmara para o folclore das Balcãs, mergulhando no chorinho ou fazendo os standards swingar; numa celebração da música onde ela permanece o elemento comum; a alegria da música do universo.
Anat Cohen: um condigno encerramento do 22.º Angrajazz.

Mas o Angrajazz continua, com a orquestra AngraJazz, com a promessa da celebração em Abril do Dia Mundial do Jazz como objectivo próximo e um grande festival em Outubro.

(JazzLogical esteve no XX AngraJazz a convite do festival)

 

Bill Frisell e Thomas Morgan
(foto por Rui Caria)

 

Paulo Barbosa

É claro que os festivais de música vivem da música que nos apresentam, mas há festivais que, por mérito próprio, conseguiram adquirir uma vida que vai para além da música. E o AngraJazz é um desses festivais, se não, por excelência, esse festival. Conseguir realizar o AngraJazz num período tão difícil, embora com óbvios aligeiramentos nos meses mais recentes, com público a ouvir, a ver e a aplaudir, ao vivo e em pessoa, os músicos é obra, é a reconstrução de um sonho para os músicos, para o público e para a organização.

Tocando arranjos de Zé Eduardo, contrabaixista e pedagogo maior do jazz nacional, para uma série de temas célebres de Cole Porter, coube à Orquestra AngraJazz, como de costume, e sob a direção dos maestros titulares Pedro Moreira e Claus Nymark, a abertura do festival. Se as intervenções do próprio Zé Eduardo e a inclusão de alguns solistas convidados, bem como da cantora Joana Pacheco, vieram conferir interesse adicional a esta apresentação, a orquestra deu novamente provas de se manter no trilho certo para a maturidade interpretativa que se quer de uma formação desta natureza. Particularmente emocionante foi ver uma secção de trompetes recheada de jovens músicos, cheios de entusiasmo por esta música e com um nível de competência francamente louvável para a sua tenra idade – mais uma indicação e uma importante nota de esperança de que a Orquestra AngraJazz tem um belo futuro pela frente e se tem tornado cada vez mais merecedora da confiança e do investimento feito ao longo de duas décadas pela associação a quem roubou o seu nome.

Menos interessante – e menos interessante do que qualquer outro concerto desta edição do festival – foi a atuação do trio do pianista alemão Vincent Meissner que se seguiu à da orquestra. Trata-se de três jovens com competências técnicas inquestionáveis, mas nem tanto enquanto músicos de jazz. Na verdade, senti-me perante mais um trio que caiu vítima do desgaste da fórmula apurada pelo EST do pianista Esbjorn Svensson, por via de um seguidismo inócuo e estéril por parte de um número sem fim de trios de piano europeus. Mesmo quando se aproximavam um pouco mais de outros trios, como os The Bad Plus ou o de Vijay Iyer, os resultados deixaram sempre muito a desejar quando comparados com os daquelas supostas fontes.

Posto isto, não foi difícil que o grande concerto de jazz europeu nesta edição do AngraJazz tivesse estado a cargo do quinteto português liderado pelo vibrafonista Jeffery Davis. Com Zé Soares no sax alto, Óscar Graça no piano, Francisco Brito no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria, Davis ofereceu-nos um concerto cuja nota alta ficou a dever-se tanto à qualidade dos originais apresentados como à da coesão do grupo como um todo, como também – e porventura mais ainda – à dos excelentes contributos de todas as suas partes enquanto intérpretes e improvisadores. Uma mostra bem ilustrativa da elevada qualidade e do bom estado de saúde do jazz nacional.

Em certa medida, a segunda noite do AngraJazz manteve-se em alta com a entrada em palco do quarteto do saxofonista Don Braden, com a pianista Miki Hayama, o contrabaixista Kenny Davis e o baterista Vince Ector. Fazendo arrancar o concerto com dois temas instrumentais (uma versão de “Don’t You Worry About A Thing”, de Stevie Wonder, e um original de Braden dedicado ao saxofonista Eddie Harris), o quarteto recordou-nos da verdade incontornável de que o jazz americano tem outro “punch”, outra energia e outro swing. Mas, embora em termos puramente instrumentais, os quatro músicos tenham continuado a fascinar até ao final do concerto, a fasquia desceu apreciavelmente com a entrada em palco de Trineice Robinson, uma cantora mais claramente enraizada na tradição da igreja e do gospel do que na do jazz – daí que o ponto alto da sua performance tenha sido, sem dúvida, o da leitura do clássico “Come Sunday”, de Duke Ellington.

A abrir o último dia de concertos, o novo trio de Bill Frisell presenteou-nos com um concerto para além do sublime! Frisell é um dos mais originais guitarristas das últimas quatro décadas, sendo a formação em trio, com o baixista Tony Scherr e o baterista Kenny Wollensen, uma das vias pelas quais mais tem marcado o jazz contemporâneo. Se este novo trio, com o contrabaixista Thomas Morgan e o baterista Rudy Royston, com o qual Frisell se apresentou no AngraJazz, é já responsável por um dos mais interessantes discos trazidos a público este ano, o concerto a que ali pudemos assistir conseguiu ser ainda mais impressionante. Frisell é um tecelão de sons (muito imitados, mas impossíveis de imitar) que se caracterizam por linhas melódicas de grande beleza e de contornos perfeitos, uma fascinante subtileza harmónica e uma manipulação inigualável dos pedais de efeitos e de loops. Sem conversas nem distrações pelo meio, a música tocada pelo trio foi, invariavelmente, do mais elevado calibre, numa sequência cuja coerência seria difícil de expressar por palavras. O concerto foi uma espécie de viagem ilustrada ao fantástico mundo da música, uma justificação cabal para que a música exista.

Após um concerto como o de Frisell, qualquer outro teria de ser sentido como uma espécie de anti-clímax. No entanto, a clarinetista Anat Cohen não teve grandes dificuldades em aquecer a sala, fechando o AngraJazz deste ano com uma nota francamente positiva. A música em si teve momentos mais altos do que outros, mas o público rendeu-se à energia e ao elevado nível interpretativo do decateto e, acima de tudo, a Anat Cohen, dotada de uma técnica irrepreensível e de um dos mais impressionantes sons de clarinete de toda a história do jazz.

O AngraJazz fechou, portanto, em alta e – livre-se o Covid de nos pregar mais partidas desagradáveis – para o ano há mais!

(Paulo Barbosa esteve no Angra Jazz a convite do festival)

Anat Cohen
(foto por Rui Caria)
Jeffery Davis
(foto por Rui Caria)
Zé Eduardo e Orquestra AngraJazz
(foto por Rui Caria)

 

Sex 1 Out Angra do Heroísmo Centro Cultural de Angra do Heroísmo 21.30 Orquestra Angrajazz
«130.º Aniversário do nascimento de Cole Porter»
Pedro Moreira (dir), Claus Nymark (dir), Zé Eduardo (arranjos, dir, ctb), Joana Pacheco (voz), Filipe Gil (sa), Rui Borba (sa), Rui Melo (st), Mauro Lourenço (st), Leonor Machado (st), André Nunes (t), Guilherme Sousa (t), Tomás Reis (t), Érica Ferreira (t), Vasco Gorgita (t), Rodrigo Lucas (trb), Manuel Almeida (trb), Afonso Almeida (trb), Simão Pereira (trb), Gonçalo Ormonde (trom), Antonella Barletta (p), Paulo Cunha (ctb), Nuno Pinheiro (bat)
Vincent Meissner Trio Vincent Meissner (p), Henri Reichmann (ctb), Josef Zeimetz (bat)
Sáb 2 Angra do Heroísmo Centro Cultural de Angra do Heroísmo 21.30 Jeffery Davis Quinteto Jeffery Davis (vib), José Soares (sa), Óscar Marcelino da Graça (p), Francisco Brito (ctb), Marcos Cavaleiro (bat)
  Trineice Robinson com Don Braden Quartet Trineice Robinson (voz), Don Braden (st), Miki Hayama (p) Kenny Davis (ctb), Vince Ector (bat)
           
Seg 4 Angra do Heroísmo Centro Cultural de Angra do Heroísmo 21.30 Bill Frisell Trio Bill Frisell (g), Thomas Morgan (ctb), Rudy Royston (bat)
Anat Cohen Tentet Anat Cohen (cl), Oded Lev Ari (dir), Vitor Gonçalves (p, ac), Sheryl Bailey (g-el), Tal Mashiach (ctb), Christopher Hoffman (celo), Nadje Noordhius (t, flis), Nick Finzer (trb), Owen Broder (sb), James Shipp (vib, per), Anthony Pinciotti (bat)